Golem – 2ª Temporada – Episódio 02 – Sacrifícios

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Aidan, Abeô e Shanumi e seus poderes quânticos.

O primeiro instinto de Abeô foi gritar por Shanumi mas, dentro do carro Aidan gemeu e mudou a cabeça de posição. O ruivo já dormia há umas doze horas, mas tinha passado bem mais que isso dirigindo, sem falar das últimas batalhas, em que quase…

O africano não queria lembrar da eternidade em que vira a bala penetrar a testa de Aidan, muito menos da relação entre sua imprudência e aquele momento. O que importava era que não queria acordar o namorado, mas também precisava reencontrar a irmã. Então, mesmo temeroso sobre deixar Aidan sozinho e inconsciente, ele caminhou na direção em que vira a irmã pela última vez, chamando-a baixinho. Continuou naquela direção até entrar uns três metros dentro da mata. Virou à direita e, imaginando que caminhava num círculo ao redor do carro, continuou a chamá-la, com a voz um pouco mais alta.

Depois de um longo minuto caminhando e chamando dentro da mata, ouviu a irmã responder:

— <Aqui.>

Foi com um misto de alívio e raiva que Abeô se aproximou da irmã. Ela estava acocorada perto de um grande cupinzeiro, de costas para ele.

— <Como é que você faz uma coisa des…?> – ele disparou enquanto caminhava para a menina. Ela, no entanto, interrompeu-o, também irritada, ainda de costas para ele, concentrada no que quer que a tinha levado a se acocorar:

— <Fazer o quê, Abeô? Seja mais específico.>

— <Como é que você tem coragem de sumir assim, sem avis…?>

Ela novamente o interrompeu, ainda mais irritada, erguendo-se sem olhá-lo:

— <E por que eu deveria avisar você? Eu não fui longe, e você me encont…>

Dessa vez foi o gigante que interrompeu, irônico, controlando-se para não gritar:

— <Porque você é minha irmã pequena? Porque eu passei pelo inferno pra te trazer aqui, pra te manter a salvo, pra te proteger? Porque você é apenas uma criança?>

Ela suspirou e se virou devagar, várias folhas e ramos na mão esquerda e os dedos da mão direita massageando a testa, olhos fechados. Respirou fundo e o encarou daquele jeito afiado, murmurando:

— <Eu não sou uma criança, Abeô. Eu sou uma velha de 55 mil 426 anos, presa no corpo de uma menina.>

— <Mas você ainda precisa que eu te proteja, além dos bichos…>

— <Animais não…>

Dessa vez o africano não se deixou interromper. Ergueu o dedo, enérgico, e continuou:

— <Além dos bichos, ainda tem uma legião de magos tentando te matar!>

— <E daí? Eu, antes mesmo de liberar meu potencial e toda minha experiência como assassina de Deuses, quase matei o Aidan!>

— <Então é isso, agora você não precisa mais de mim pra nada, não é isso? O golem já cumpriu seu propósito de juntar os assassinos, não serve mais pra nada, vamos descar…>

— <Pára!> – ela gritou.

Ele não tinha a mínima vontade de parar, mas obedeceu. Ela ainda massageou a testa alguns instantes, olhos fechados, respirando profundamente antes de fitá-lo e responder:

— <Eu não vou mentir, Abeô. Eu não tenho ideia do que é ser você, do que é descobrir que teve corpo e alma milimetricamente planejados para cumprir um objetivo. Mas você também não tem ideia do que é ter visto tanta merda no mundo a ponto de cada coisa que você enxerga te fazer lembrar de alguma tragédia da sua história, ou lembrar alguém que você amou e perdeu. Não faz ideia do que é ter sido criança, adulta e velha centenas de vezes, a ponto de quase tudo no mundo parecer com algo que você já viveu, um eterno déjà vu, onde quase tudo perdeu a graça. Sabe o que é desejar esquecer de tudo, colocar uma pedra em cima de tudo, e ainda assim assumir a obrigação de adiar sua próxima encarnação pelo máximo de milênios possível? Mesmo sabendo que morrer e renascer seria a única coisa que lhe faria o mundo voltar a ter alguma graça?>

Ela parou e voltou a massagear a testa. Respirou lenta e profundamente umas quatro vezes antes de continuar:

— <São mais de 55 milênios de guerra, Abeô. Você ainda está perdido nela e eu já não a aguento mais. Mas somos só mais dois dos sacrifícios pelo bem da humanidade, por um pouquinho de tranquilidade para cada pessoa viva, para evitar que as ilusões dos vivos sejam esmagadas pelos mortos.>

Ela voltou a encará-lo e indagou:

— <Você consegue entender o que estou dizendo? Faz algum sentido pra você?>

Abeô franziu os lábios e analisou o olhar da menina. Ainda era amargo, impaciente e afiado, mas agora havia aquela pontada de angústia. Se compreendia todas as consequências do que ela tinha dito? Nem de longe, ainda demoraria um bocado pensando em tudo. No entanto, começava a ter uma noção. Por isso meneou um “sim”, ao que ela continuou:

— <Vamos tentar não dificultar ainda mais a vida um do outro, ok? Por hora eu preciso de muito espaço e quase nenhum cuidado, então tente se lembrar disso. E eu vou tentar me lembrar o quanto tudo é novo e intenso pra você. Quanto aos teus instintos protetores, concentre-os no Aidan. Ele deve passar péssimos bocados nas próximas semanas, então aproveite ao máximo a companhia dele. Beije muito, abrace muito, trepe muito.>

Abeô pensou em protestar, dizer que a última transa deles tivera resultados catastróficos, mas se conteve. Queria encerrar aquela conversa o mais rápido possível, sair de perto dela e pensar.

— <Pode me trazer o brasileiro?> – ela perguntou casualmente, voltando a catar folhas.

Com os pés lentos e a cabeça a mil por hora, o gigante voltou para a pickup. Observou Aidan ainda adormecido, respirando profundamente. Não queria acreditar no fato de que ele próprio era apenas um golem criado para atraí-lo, nem nos dois mil anos de vida, nem nos deuses, nem na doença, mas sabia que era tudo verdade. Tinha evitado pensar nisso, mas as palavras do ruivo, dias atrás, voltavam à memória: “Nas próximas semanas eu devo desenvolver câncer no cérebro, no fígado, no pulmão, nos intestinos, na pele. Devo ficar coberto de pústulas negras, perder peso até ficar pele e osso, devo vomitar sangue e fezes. (…) Meu corpo, braços, dedos, coluna e pernas deverão ficar retorcidos, vou perder a capacidade de controlar quando evacuo e urino, mas isso não deverá ter importância, porque devido ao câncer de estômago e intestino dificilmente conseguirei ingerir alguma coisa.” Claro, havia o fato de Willa, a encarnação anterior de Shanumi, ter dito algo sobre ela talvez conseguir curar Aidan, mas agora a menina-anciã dizia que aquilo tinha sido um erro. E não, não havia motivo para não acreditar. Tudo que parecia restar a Shanumi era sua preciosa guerra então, se pudesse curar Aidan, ela provavelmente já o teria feito.

O africano tirou a camiseta, já furada em vários pontos, colocou-a na caçamba e olhou para os dois sentidos da estradinha em que estavam. Certificou-se que ninguém se aproximava e então, com muito jeito, ergueu o desacordado brasileiro coberto de espinhos e chifres. Não o conhecia tão bem, mas sabia o quanto tinha sacrificado para impedir a morte de Aidan. Era mais que suficiente para tratá-lo com toda delicadeza e respeito ao carregá-lo. Olhou mais uma vez para Aidan, adormecido no carro, e pensou se não deveria despertá-lo, dar-lhe uma melhor chance de lutar caso houvesse uma emergência. Desistiu: o ruivo parecia dormir pesado demais. O gigante preferiu ficar atento enquanto estivesse longe e, caso ouvisse algo, retornar assim que possível.

Assim que se afastou da pickup, as imagens dos espinhos e chifres do brasileiro trincando e explodindo lhe voltaram nítidas à mente. Ao mesmo tempo em que torcia para que a irmã ajudasse o estranho aliado, lembrou-se da vida que tirara para salvá-lo. Ainda via o punho, coberto pelos olhos de piche, atravessando um crânio humano. E aquele tinha sido apenas o primeiro assassinato que cometera, o que vira com mais detalhes, o que o dava vontade de vomitar e morrer. Vomitar e morrer, no entanto, eram luxos aos quais não podia se dar, por isso tentou inundar a mente com outras questões. Como o que, afinal, Shanumi planejava para o brasileiro.

— <Você demorou.> – ela rosnou assim que ouviu os passos do irmão, ainda acocorada de costas para ele, catando folhas à direita do cupinzeiro.

Abeô pensou em não responder nada, mas acabou por murmurar:

— <Muita coisa pra pensar.>

Ela respirou fundo e ergueu-se, sem virar. Apontou para a esquerda e para baixo e esperou o irmão depositar o brasileiro à esquerda do cupinzeiro.

— <Obrigado.> – ela sussurrou, olhos fechados – <Agora afaste-se um pouco. Te aviso quando terminar.>

O gigante atendeu e se afastou uns três metros. Observou a menina, ainda de olhos fechados, atirar ao ar as folhas que tinha colhido. Subiram por um ou dois segundos e pararam, uma nuvem estática de folhas. A menina estendeu a mão à frente e milhares de gotículas brotaram das folhas congeladas no ar, confluindo para formar um orbe esverdeado que girava acima da mão de Shanumi. Então, de repente, as folhas caíram, algumas mais rápidas, outras mais lentas. Ao mesmo tempo, pequenos tentáculos brotaram da esfera verde, mergulhando em vários pontos entre os espinhos e chifres do brasileiro. Isso fez com que o orbe diminuísse lentamente até que, já metade do tamanho original, os tentáculos pararam de surgir. A menina apontou a outra mão para o cupinzeiro, ao que uma multidão de insetos flutuaram para fora do monte de terra. A menina contraiu os dedos, e então algo amarelo e transparente começou a ser extraído dos animais, que agora mais pareciam larvas brancas a caminho do chão.

A substância amarela mergulhou no orbe verde, formando uma esfera marrom do tamanho de uma bola de futebol. Foi quando tentáculos começaram a brotar e se dirigir para as rachaduras mais visíveis nos chifres e espinhos do brasileiro. Abeô acabou não resistindo à curiosidade e cobriu-se de piche. Com a visão aprimorada de seus milhões de olhos, percebeu a incrível semelhança entre a substância que a irmã criara e a dos espinhos do brasileiro. Também era formidável a maneira como aquela cera marrom se adaptava a cada rachadura, cobrindo e tapando, como curativos, as frestas e cacos dos chifres.

Após alguns minutos daquilo, o brasileiro flutuou, ainda adormecido, para os braços do gigante, que imediatamente puxou o piche novamente para dentro do corpo. Tomou o brasileiro nos braços, já mais confiante para carregá-lo sem machucá-lo. Perto do formigueiro, a menina voltou a acocorar-se e colher folhas, notavelmente diferentes das anteriores.

— <Me esperem no carro, Abeô. Já me junto a vocês.> – murmurou.

Carregando o brasileiro nos braços, o africano dirigiu-se à pickup. Pensou se as coisas seriam assim agora: seguir a liderança da irmã pequena, que mal olhava para ele. Já com a pickup à vista, viu Aidan sair do carro e caminhar para ele.

O coração do gigante encolheu-se, gelado. Não sabia ainda porque, mas algo em avistar o ruivo desperto o deixava apavorado. O tatuado aproximou-se, sorridente e visivelmente cansado, indagando:

— <Shanumi está bem?>

Caminhando para a caçamba da pickup com o brasileiro nos braços, Abeô respondeu:

— <Ela parece bem. Está trabalhando em algo.>

Sem perceber, o africano evitava olhar para o assassino de Deuses. Deitou o colega espinhoso na caçamba e, antes que pudesse evitar, seus olhos correram Aidan de cima a baixo enquanto ele pegava uma garrafa de água na cabine do veículo. Estava mais magro?

O ruivo bebeu os dois litros de água como se não fossem nada. Olhou para o africano e sorriu triste, olhos fundos.

— <Você parece mais cansado do que quando começou a dormir.> – o gigante comentou.

— <De certa forma estou.> – Aidan respondeu – <Quando a adrenalina baixou, não consegui evitar mais os efeitos do esforço que fiz.>

Abeô pensou em perguntar o que seria adrenalina, mas isso não teve mais importância quando o namorado aproximou-se para beijá-lo. Normalmente, teria se abaixado por instinto, para que os lábios se tocassem. Contudo, apenas deixou-se abraçar pelo outro, o calor gostoso do corpo dele inundando seus ossos e músculos como mel. Não sabia se ainda queria aquilo. Porque se ele era uma armadilha para Aidan, o ruivo também era uma para ele. Apesar do medo de perder o escocês, queria contar lhe contar a verdade. Ele merecia a verdade, não merecia?

As mãos tatuadas lhe alcançaram a nuca e gentilmente puxaram o rosto para baixo. Inebriado, Abeô deixou-se conduzir, ofegante, desejoso mas também sufocado por aquela atração. Até que, com os lábios a milímetros dos do ruivo, murmurou:

— <Nós temos um assunto muito sério para tratar, Aidan McNaught.>

Osiris Reis

Osiris Reis

Osíris Reis zanzou da Medicina à Mecatrônica antes de assumir a tara por Ficção Fantástica. Formado em Audiovisual pela Universidade de Brasília, é autor de “Treze Milênios” (ficção científica vampiresca), dos contos “Madalena” (Paradigmas 1), “Alma” (Imaginários 1), “Queda” e “Companheiros de Armas” (Fantástica Literatura Queer) e da coletânea de contos “Sobre humanas fúrias”, condecorada com o Prêmio Cassiano Nunes do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. É o baixo do grupo Supertronica, animador 3d, editor de vídeo e do BNCast, empreendedor, compositor, além de, para os íntimos, consultor tecnológico.
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